O rio São Francisco, o Velho Chico, que pela sua importância já foi chamado de o rio da integração nacional, corta cinco estados do semi-árido nordestino, região conhecida por sua secas e fomes periódicas. Em sua passagem, transforma o sertão brasileiro às suas margens em pequenos oásis de fertilidade. Desde o início dos anos 1970, no entanto, vem sendo desenvolvida uma agressiva política de aproveitamento de suas águas para geração de energia elétrica. Grandes barragens têm sido construídas para isto.
A Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF),
concessionária da Empresa Brasileira de Energia (ELETROBRÁS) no Nordeste, é a
empresa estatal responsável pela geração e distribuição de energia elétrica na
região, e, portanto, responsável direta pela construção das grandes barragens.
Quando da construção da barragem de Sobradinho, a forma
dramática como aconteceu o desalojamento dos trabalhadores rurais constituiu-se
em violência e injustiça social, com os camponeses sendo expulsos de suas
terras sem direito a quase nada, a não ser irrisórias indenizações.
Denunciou-se então ser aquela a "maior migração humana forçada após a 2ª
Guerra Mundial".
Ainda em 1974 foram dados os primeiros passos para a
criação de outra grande barragem, no local da antiga cachoeira de Itaparica;
sendo construído em 1988, um reservatório de 150 km de comprimento alagando 834
km² de terras. Foram deslocadas cerca de 10.500 famílias - quarenta e cinco mil
pessoas - das zonas urbanas e rural de 7 municípios dos estados de Pernambuco e
Bahia. O deslocamento dessa população se deu em condições menos desfavoráveis
do que quando da experiência anterior. Um movimento organizativo de
trabalhadores começou a se articular a partir de 1976, espelhados nos
desastrosos acontecimentos ocorridos com as populações atingidas pela barragem
de Sobradinho ali adiante, no mesmo rio.
Em 1979 criou-se uma estrutura organizativa chamada de polo
sindical dos trabalhadores do Submédio São Francisco para lutar contra os
efeitos negativos da construção da Hidrelétrica de Itaparica, unificando
posseiros, arrendatários, pequenos agricultores e sem terras da região,
constituindo-se como uma organização de trabalhadores rurais para defesa dos
direitos dos camponeses perante o governo.
O polo sindical passou a pressionar a empresa estatal
responsável pela barragem no sentido da obtenção de reassentamento com
irrigação para a população deslocada, e ao longo dos anos realizaram
manifestações públicas como ocupação de escritórios estatais e canteiro de
obras (manifestações que reuniram mais de 5 mil camponeses) e passeatas,
petições, seminários, enfrentamentos e lutas relacionadas aos efeitos sociais e
ambientais da barragem. Esse forte movimento social tem obtido vantagens frente
ao Estado e aos órgãos financiadores do projeto, como o Banco Mundial. Todavia,
a dinâmica social exige a cada, momento novas estratégias e táticas de lutas
sociais devido à conjuntura nacional sempre em mudança. Cortes orçamentários,
novas posturas governamentais e a anunciada privatização da empresa pública
responsável - a CHESF - fazem com que o movimento sindical esteja sempre atento
e ágil para desenvolver ações na defesa dos interesses dos seus representados.
Pelas suas dimensões, e pelo impacto ambiental provocado
quando das suas construções, discorreremos nesse trabalho sobre essas barragens
- Sobradinho e Itaparica - e que ações foram executadas pelos atores
institucionais e sociais envolvidos, para enfrentar as consequências advindas
quando da realização daquelas gigantescas obras. Pretende-se também fazer um
balanço crítico dessa realidade e antever tendências sociais e políticas do
movimento organizativo dos trabalhadores rurais na sua relação com o Estado
brasileiro.
Quando o sertão virou mar...
Entre os anos de 1972 e 1979, época de vigência da
ditadura militar brasileira, na região norte do estado da Bahia, foi implantada
pela CHESF a barragem de Sobradinho, com as finalidades de: (a) acumulação
das águas do rio São Francisco para regularizar o fornecimento às usinas do
complexo hidrelétrico a jusante, e (b) possibilitar a agricultura
irrigada em escala empresarial.
Uma área de 4.214 km² de ocupação agrícola e pecuária foi
inundada, formando o que se divulga ser o maior lago artificial do mundo em
espelho d’água. O represamento das águas do rio atingiu sete municípios, sendo
os mais afetados os municípios de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado,
que tiveram as suas sedes transferidas; e mais Juazeiro, Xique-Xique e Barra,
menos afetados. O relocamento populacional se deu através de expulsão violenta,
principalmente dos moradores das áreas rurais, na sua maioria camponeses
pobres, que viviam nas barrancas do rio cultivando os solos aluviais das ilhas
e margens do rio, pescando e criando animais. Foram desalojadas cerca de 12 mil
famílias, num total aproximado de 72 mil pessoas. Desse universo, 8.619
famílias habitavam a zona rural.
Devido a fatores como a falta de organização e
representação sindical e política, o isolamento social em que viviam, baixo
nível educacional e desinformação, e uma situação de pobreza secular, esses
trabalhadores rurais foram os que mais sofreram com a migração involuntária. As
poucas vozes independentes à época - época de censura e medo - diziam ser
aquela a maior migração forçada de população desde a 2ª Grande Guerra.
Comparando, sem exagero, a situação dos trabalhadores ribeirinhos às vítimas
dos horrores nazista.
A impotência dos trabalhadores rurais frente ao poder
descomunal da "besta-fera", como denominavam a CHESF, referindo-se ao
monstro do Apocalipse, e a total incapacidade da participação dos camponeses
expulsos na co-determinação do seu destino, levam a que o movimento organizado
atual dos camponeses se ressinta daquele passado ou das memórias que dele se
produzem, relegando-o à passividade e à submissão.
O qué explica que uma obra considerada de interesse
nacional executada por uma empresa pública se faça sob o signo do terror? Para
responder, é preciso que se considere a conjuntura político-econômica que se
desenvolvia à época, propiciando as idéias, os interesses e as práticas que
configuraram a decisão de construir a barragem de Sobradinho, o modo como ela
foi imposta e o discurso com que se pretendeu justificá-la.
Vivia-se em plena ditadura militar, período de maior
autoritarismo na história brasileira recente, e o Estado, então, desprendido da
sociedade como um todo, é capturado por setores que, colocando-o a serviço de
seus interesses, tornam-no um Estado contra a sociedade. Estes setores, alçados
ao poder do Estado em 1964, constituíam-se de empresários nacionais e
estrangeiros afinados com o capitalismo internacional, tecnocratas e militares
alijados do poder populista do período anterior, todos aliados em torno de um
modelo de desenvolvimento urbano-industrial, dependente-associado, que se
estabelecia com base na centralização administrativo-burocrática e na repressão
política e social.
Esse era o período do "milagre econômico"
brasileiro, quando, decorrente de reformas institucionais implementadas e
investimentos e empréstimos estrangeiros, a economia crescia a índices recordes
acima de 10 por cento do Produto Interno Bruto ao ano. Em 1969, este
crescimento foi anunciado como meta do conjunto de medidas ambiciosas contidas
no I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), para o período de 1970/73 e no
II PND, anunciado em 1974, para o período 1975/79, ignorando a crise mundial
que começara com o choque do petróleo promovido pelos países exportadores - a
OPEP - em 1973.
O desenvolvimento é confundido com acumulação capitalista
em escala ampliada, que supõe infra-estrutura, inclusive energética, também
ampliada. Tais premissas se impõem imperiosamente, pondo a sociedade a serviço
da economia. É dentro desse contexto que são iniciadas grandes obras públicas
(Transamazônica, Perimetral Norte, Ferrovia do Aço) - consideradas
"faraônicas", pelos seus críticos - e a barragem de Sobradinho é
anunciada em 1971 e construída até 1978.
Sobradinho reflete a imposição de um modelo de
desenvolvimento agro-industrial que interioriza o capital no campo e visa universalizar
e homogeneizar todo espaço físico e social em bases num processo determinado a
partir de fora, em função de interesses externos e internos associados, sob o
patrocínio direto e indireto do poder público. É interessante assinalar que,
com a redemocratização do país a partir de 1985, a política energética
continuou a mesma, apesar de todas as críticas realizadas àquele modelo.
O desprezo pelos trabalhadores rurais da borda do rio,
vistos como ignorantes e incapazes pelos preconceitos urbanos, os torna
cidadãos de segunda categoria. São percebidos de uma forma que se assemelha em
muito à visão do colonizador "civilizado" diante das sociedades
tribais "bárbaras e primitivas". Dessa forma compreende-se as razões
da ausência de qualquer plano previamente estabelecido de relocação e
reassentamento para esse tipo rural, extremamente pobre e subdesenvolvido.
Considerava-se que a grande obra de construção civil, por si só, trouxesse
benefícios indiretos para aquela coletividade.
Os camponeses pobres, por essas mesmas razões, eram
excluídos dos projetos futuros de reinstalação em terras férteis da borda do
lago, tidos como incapazes para a agricultura irrigada, terras destinadas as
grandes empresas. Para os habitantes das quatro cidades inundadas, desde o início
estava definida a reconstrução dos equipamentos públicos de melhor padrão.
Todavia, para os camponeses não se justificavam esses gastos extraordinários.
Quando, em dezembro de 1977, iniciou-se o represamento
total do rio, as águas da barragem, como um dilúvio sem Noé e sem arca,
configuraram-se como a tática eficaz para a remoção da população ribeirinha. À
medida que subiam as águas, crescia o pânico dos que ainda não haviam sido
relocados e terem que fugir para não serem afogados, abrigando-se precariamente
sob galpões ou lonas fornecidas pela CHESF ou debaixo de árvores, à beira das
estradas ou à margem do lago que se forma. Há indícios de aumentos de ataques
cardíacos, alguns seguidos de morte, e de suicídios.
Violência, baixas indenizações, desorganização da
produção e falta de perspectivas para os trabalhadores rurais havia sido o
saldo deixado pela CHESF. As seqüelas existem até hoje: uma parte daquela
população ainda vaga, miserável, pelos sertões. Os danos ambientais foram
consideráveis. A sucessão de barragens ao longo do rio fez com que a flora da
área ribeirinha praticamente desaparecesse. As alterações climáticas provocadas
pelos lagos e vasto desmatamento processado para a relocação das cidades e das
áreas de agricultura e pastoreio ainda estão sendo estudadas. A fauna, apesar
de eventuais operações de resgate, morreu afogada ou viu seu habitat se reduzir
drasticamente. O surubim, peixe de piracema típico da região, está impedido de
subir o rio para se reproduzir, já que não há "escadarias" nas
barragens.
Quando o sertão virou mar.... 2ª parte
Em 1974 foram dados os primeiros passos para a criação da
barragem no local da antiga cachoeira de Itaparica. Em 1988, um reservatório de
150 km de comprimento alagou 834 km² de terras de boa qualidade. Delas eram
arrancadas cerca de 200 mil toneladas de alimentos por ano. Foram deslocadas
cerca de 10.500 famílias - quarenta e cinco mil pessoas - das zonas urbanas e
rural dos municípios de Petrolândia, Floresta, Itacuruba, Belém do São
Francisco, no estado de Pernambuco, e os de Glória, Rodelas e Chorrochó, na
Bahia. Três cidades desapareceram, replantadas em outros locais com os
pré-nomes de Nova ( Rodelas - BA, Petrolândia e Itacuruba - PE).
O deslocamento dessas populações foi em condições menos desfavoráveis
do que quando da experiência anterior. Um movimento organizativo de
trabalhadores começou a se articular a partir de 1976, espelhados nos
desastrosos acontecimentos ocorridos com as populações atingidas pela barragem
de Sobradinho (e também Moxotó) ali adiante, no mesmo rio.
No plano nacional, iniciava-se um processo de abertura
política, que o ditador de então, o general Ernesto Geisel, classificou de
"abertura lenta, gradual e segura" - tão lenta e gradual que a
redemocratização plena do país só viria a acontecer em 1990, com a posse do
primeiro presidente eleito após 24 anos de ditadura militar. Devido a essa
incipiente distensão política, os movimentos sociais no Brasil começaram a se
organizar: estudantes, operários metalúrgicos, bancários, trabalhadores rurais
entre outras, e instituições como a Igreja Católica apoiaram a luta pelo
retorno a um Estado de Direito. É nesse ambiente mais favorável ao
associativismo que aconteceram as primeiras assembléias por município,
encaminhadas por alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais, com o apoio da
Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (FETAPE) e da
Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Em 1979 ocorreu a
primeira grande manifestação, uma concentração com cerca de 2.000
trabalhadores, em Petrolândia.
A principal reivindicação foi o reassentamento. E parte
do princípio de "terra para quem nela trabalha", ou seja, todos
deveriam ter o direito à terra, independente de ser ou não proprietário rural.
Segundo a CHESF, cerca de 60 por cento estavam enquadrados na situação de
proprietários. Assim, o movimento se constituía com o caráter de luta por
reforma agrária.
A pauta de reivindicações era a seguinte: terra por terra
na margem do lago; água nas casas e nos lotes; casa para morar; área de
sequeiro e criatório; indenização justa das benfeitorias. As articulações para
a formação do Pólo Sindical do Submédio São Francisco são feitas. Reunindo 13
Sindicatos de Trabalhadores Rurais, sendo 7 das áreas inundadas, esta organização
coordenou as mobilizações. Elas se intensificaram e ganharam volume. Uma
característica marcante da pressão que o pólo sindical passou a exercer sobre a
CHESF tornou-se então, as grandes concentrações de protesto nos escritórios da
empresa e no canteiro de obras da barragem. Essas concentrações demonstraram a
capacidade organizativa e de mobilização das lideranças do movimento,
manifestando-se como força e unidade de comando.
O ano de 1980 iniciou-se com aquela que é chamada a 2ª
Concentração, em frente aos escritórios da CHESF, em Petrolândia, reunindo
estimadamente 5.000 trabalhadores. Essa pressão força a empresa a mostrar o
mapa com o tamanho do lago. Outras manifestações foram realizadas, e no dia 1º
de maio aconteceu a 3ª Concentração, em Riacho Salgado, para comemorar a
conquista do "mapa do lago". Ainda neste ano realizou-se a 4ª
Concentração de trabalhadores, com a participação de 4.000 manifestantes. Foi
aprovado um abaixo-assinado dirigido ao presidente do Brasil, reivindicando
terra para o reassentamento das famílias relocadas.
Na esfera governamental, formou-se um Grupo de Trabalho
pelo então Ministério das Minas e Energia para estudar as propostas dos
trabalhadores. Com isso, o governo reconheceu a necessidade de negociação. Ao
longo do ano de 1981 o Pólo Sindical desenvolveu um trabalho de localização e
escolha de terras para o reassentamento. No mês de novembro foi entregue à
CHESF um Plano de Reassentamento, município por município, com a relação das
áreas.
Um grande confronto entre a polícia e os trabalhadores
ocorre em 1982, no município de Glória. Os trabalhadores rurais impedem a CHESF
de retirar pedras e outros materiais para as obras da barragem, de um sítio
onde viviam dezenas de famílias, na localidade de Caruru, acampando na estrada e
impedindo o trânsito das máquinas. Após 14 dias de resistência, com o apoio do
Pólo Sindical, os manifestantes foram expulsos com violência e, após
negociações, os atingidos são reassentados provisoriamente. Em janeiro de 1983
realizou-se a 5º Concentração, em Petrolândia, com a presença de 5.000
trabalhadores. Protestou-se contra a demora e a falta de providências da CHESF,
além da denúncia da violência praticada no Caruru.
O ano de 1984 iniciou-se com mais uma grande
manifestação, também em Petrolândia: a 6ª grande Concentração. Essa forma de
mobilização e pressão organizada pelo Pólo Sindical mostrou-se eficaz desde os
primórdios do movimento até os dias de hoje, março de 1999. As grandes
conquistas desse movimento social foram conseguidas através da realização de
mega-manifestações de massa, ao lado de uma articulação do Pólo Sindical com
demais organizações da sociedade civil e apoio político de parlamentares e
Partidos oposicionistas.
O Brasil vivia então num momento de transição da ditadura
militar para o primeiro governo civil, que tomaria posse no ano seguinte.
Reunindo um grande número de assessores técnicos - advogados, geógrafos,
agrônomos - o Pólo Sindical aprimora sua proposta inicial e traça as diretrizes
básicas para o reassentamento. As linhas principais passaram a ser: área
irrigada de 6 hectares para cada trabalhador; 25 hectares de área; área de
sequeiro e criatório; irrigação por aspersão; administração do projeto pelos
trabalhadores; casa para todos; estrada; escolha de terras boas; desapropriação
das terras
Em 1985 o Pólo Sindical articula-se para as negociações e
realiza entrevistas com ministros em Brasília e com Governadores de estados em
Salvador e Recife. Na falta de resultados concretos, promoveu manifestação de
um dia no canteiro de obras da barragem, com a participação de 8.000
trabalhadores rurais. O discurso radicalizou-se: " Se a CHESF não fizer o
reassentamento imediatamente, voltaremos para parar essa obra
imediatamente".
Com a forte pressão e ameaça, a CHESF acenou com a
possibilidade de medidas concretas, como reassentamento nas áreas da borda do
Lago, ao tempo que alegava não ter recursos para realizar os projetos. Além
disso, prometia o fechamento da barragem em um ano. Isso provocou um choque com
os interesses dos camponeses. No dia 1º de dezembro de 1986, os trabalhadores
ocuparam o canteiro da barragem e ali acampados, paralisaram as obras por seis
dias. A CHESF ameaçou convocar o Exército para reprimir a manifestação e
desalojar os acampados, mas logo cedeu e, em negociação, foi costurado o "Acordo
de 1986".
O "acordo de 1986"
Esse acordo foi a referência mais significativa e a
vitória mais importante do movimento organizado pelos atingidos da barragem,
coordenados pelo Pólo Sindical. Ficou ali demonstrado que a CHESF não tinha
formulado até então nenhum projeto de reassentamento. Mas toda essa
movimentação se deu em um momento muito delicado, em que o Brasil estava
negociando dinheiro externo para um plano de recuperação do setor hidrelétrico.
A repercussão nacional e internacional do conflito terminou forçando o acordo.
O Brasil vivia então um período de redemocratização, que
foi batizado de Nova República. Governava o país um presidente civil, após 21
anos de regime militar. E o governo do presidente José Sarney era muito
sensível a reivindicações de grupos de pressão, o que contribuiu para as
negociações. Esse foi o momento também que os trabalhadores rurais
radicalizaram as suas formas de luta, através de ações ousadas, sem sofrerem a
forte repressão do período ditatorial.
O cumprimento do acordado naquele fórum é cobrado até
hoje, pois o Acordo de 1986 ainda está em vigor. Foi acertado o
seguinte: terra para irrigação; casa de moradia; terra para o criatório;
assistência técnica; garantia de 2,5 salários mínimos até o inicio da produção;
indenização justa; participação dos trabalhadores nas decisões de
reassentamento. A aplicação do acordo começou em 1987: a compra das terras, a
construção das casas e o início de algumas obras de implantação do sistema de
irrigação. Os conflitos de interesses resultantes das demandas dos
trabalhadores e da acusação do não cumprimento integral do acordo levou a que
os trabalhadores, no dia 10 de dezembro daquele ano fechassem as estradas e
paralisassem a construção da nova cidade de Itucuruba. Em janeiro de 1988 houve
novo fechamento de estradas e paralisação da construção da nova cidade de
Rodelas e do povoado de Tarrachil. Em Belém, os trabalhadores ocuparam os
escritórios da CHESF e paralisaram a construção da nova cidade.
A partir de 1990, quando da posse do presidente Fernando
Collor, eleito pelo voto direto, o Estado brasileiro inicia uma rígida política
de contenção de gastos, tendo como conseqüência para a região a estagnação dos
projetos de irrigação. Com o novo governo, de perfil centralizador e
autoritário, e de desprezo aos movimentos sociais, estabeleceu-se uma relação
de conflito. Em 1991 foram promovidas novas manifestações de protesto nos escritórios
da CHESF e na barragem. Como ação intimidatória, policiais militares da Bahia e
Pernambuco promovem o cerco e invasão de dez diferentes agrovilas, sob o
pretexto de buscarem armas, espancando e detendo pessoas, entre elas dirigentes
sindicais. Além disso, as reuniões entre o Pólo Sindical e a CHESF passaram a
ser "protegidas" por forte aparato de segurança.
Há uma reviravolta na situação política do Brasil, o
presidente Fernando Collor sofre impeachment em 1992 e o seu vice,
Itamar Franco, assume o governo de transição até as eleições seguintes. Em 1993
as obras de reassentamento rural foram retomadas, e o Pólo Sindical se
fortaleceu através de uma hábil articulação política e de solidariedade da
sociedade civil. O movimento dos trabalhadores atingidos pela barragem entra
num novo estágio de organização. Essa é uma população em sua maioria acostumada
com técnicas tradicionais, com baixo índice de alfabetização, habituada ao
trabalho em parceria ou assalariamento, sem autonomia nas decisões sobre a produção,
desgastada com quatro anos de espera e jogada por contingências não desejadas
em um outro modo de vida e com desafios pela frente.
Decorrente dessa nova realidade, cooperativas e
associações de produtores são fundadas, surge a preocupação com a administração
dos projetos, formação e assistência técnica; treinamento de agricultores para
o domínio da nova técnica de irrigação, buscando evitar o encharcamento e a
salinização do solo etc.
Itaparica 1998
Com esse título o Pólo Sindical do Submédio São Francisco
lança um manifesto à nação e afirma que, como resultado do Acordo de 1986 até
então apenas 38 por cento dos projetos de irrigação estavam em produção, com
uma série de pendências; 42 por cento em construção e 20 por cento em estudo e
sem definição. O Brasil nesse momento é governado pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso.
Até aquele instante, na área rural, a CHESF tinha
construído 126 agrovilas, com casas de alvenaria e infra-estrutura de energia
elétrica, água tratada, saneamento básico e equipamentos comunitários (escolas,
postos de saúde etc.). Os projetos de irrigação em funcionamento produziram, em
1997, cerca de 80 mil toneladas de produtos agrícolas, 340 mil dúzias de ovos,
350 toneladas de frango de corte e 330 mil litros de leite de vaca. Tanto para
esses produtores como para os demais trabalhador ainda desocupado é pago uma
Verba de Manutenção Temporária (VMT) num valor próximo a dois salários mínimos.
No ano anterior 1997 o Pólo Sindical solicitou o Painel
de Inspeção junto ao Banco Mundial, visando obter recursos para conclusão de
Itaparica e assegurar a implementação de medidas de interesse da população
reassentada nas agrovilas e projetos de irrigação. Foram as seguintes demandas:
implantação de estruturas de drenagem; recuperação de solos; ajuste do sistema
hidromecânico e instalação do campo de pesquisa agropecuária; construção de
obras físicas e instalação de equipamentos (Centro de Armazenamento,
mini-hospitais etc.) nos núcleos principais de todos os projetos. Subsídios
para a energia elétrica utilizada nos projetos de irrigação; criação de linhas
de crédito especiais para custeio, investimento e capital de giro; instalação
de estações meteorológicas para controle de dados climatológicos, necessários
ao manejo eficiente de irrigação; e, mais as demandas específicas das agrovilas
e projetos de irrigação existentes e em implantação, assim como o início da
construção daqueles que continuam apenas em projeto.
O governo Fernando Henrique muda a forma de mediação do
Estado com os trabalhadores rurais e cria o Grupo Executivo para a Conclusão do
Projeto de Reassentamento de Populações da Usina Hidrelétrica de Itaparica
(GERPI) órgão ligado à Casa Civil da Presidência. Ao tempo em que anuncia o
cronograma de privatizações do sistema energético- a ELETROBRÁS, aí incluída a
CHESF, para 1998.
O programa brasileiro de privatizações, iniciado em 1991,
acelera-se durante o governo atual, e é considerado o maior em andamento no
planeta. Após a privatização da siderurgia, petroquímica, telefonia e outros, o
setor energético de propriedade da União se torna a bola da vez. Para os
trabalhadores rurais atingidos pela barragem, a privatização da CHESF se
constituiu numa ameaça ao cumprimento do Acordo de 1986, e as mobilizações
para a execução e complementação dos projetos são revigoradas.
No mês de março de 1998 a CHESF preparava-se para as
comemorações dos seus 50 anos, com toda pompa e circunstância, e foi anunciada
a presença do presidente da República. O Pólo Sindical, em resposta, organizou
uma grande manifestação, envolvendo quatro mil trabalhadores, ocupando e
acampando na sede regional da empresa, em Paulo Afonso. As comemorações foram
suspensas, a visita do senhor presidente adiada. Três diretores da Companhia
foram mantidos reféns. A ocupação durou seis dias e, após negociações para a
liberação de verbas para os reassentamentos, os trabalhadores voltaram para as
suas casas.
Em dezembro de 1998 o Grupo Executivo para a Conclusão do
Reassentamento de Itaparica (GERPI) lançou a proposta de Solução Financeira
para as 1.680 famílias desalojadas pela barragem e que ainda não obtiveram
lotes irrigados. Isso quer dizer que as famílias receberiam uma compensação
financeira num valor entre 20 mil US$ e 33 mil US$ para abrirem mão do
recebimento de terras em projetos de irrigação.
O Pólo Sindical se posicionou radicalmente contra a
Solução Financeira e trabalhadores rurais ocuparam o escritório da Gerência do
Empreendimento Itaparica (GEI), em Jatobá- Pernambuco, fazendo 30 funcionários
como reféns e reivindicando a conclusão dos projetos de irrigação em andamento.
Segundo o GERPI, cerca de mil famílias tinham assinado o Termo de Opção, isto
é, optaram pela compensação financeira, faltando assinar o Termo de Transição,
para recebimento do dinheiro acordado.
Frente a essa situação, o Pólo Sindical propôs a
realização de um plebiscito para que as famílias interessadas decidissem
democraticamente sobre os seus destinos. Enquanto isso, em toda região Nordeste
do Brasil, assim como na bancada parlamentar nordestina no Congresso Nacional,
construiu-se um movimento suprapartidário contra a privatização da CHESF. O
governo recua diante das pressões e suspende temporariamente o processo de
privatização da Companhia.
Conclusões
Nesse breve estudo foi visto que, baseados na experiência
dos tristes episódios vividos pelos trabalhadores rurais expulsos de suas
terras quando da construção da barragem de Sobradinho, entregues à própria
sorte no sertão nordestino, ergue-se um vigoroso movimento sindical nos municípios
atingidos pela construção da barragem de Itaparica, quando os trabalhadores
rurais organizam-se para lutar contra os efeitos negativos daquela grande obra.
O eixo mobilizador dos camponeses desde o início foi de
reivindicação de reassentamento em áreas irrigadas. E a partir disso todas as
ações foram desencadeadas para forçar o governo a aceitar essas propostas.
A conjuntura política de redemocratização nacional e as
grandes mobilizações de massa orquestradas com ousadas ações demonstraram a
força do movimento e foram eficazes para a obtenção do Acordo de 1986. Com
o Estado imerso em crise fiscal e graças à mobilização constante e articulação
política a nível nacional os trabalhadores rurais obtiveram respostas às suas
reivindicações.
Mais recentemente a luta principal torna-se a conclusão
dos projetos de irrigação e a oferta de estrutura para o seu funcionamento. Um
novo fator instaura-se no cenário: a premente privatização da Companhia
Hidrelétrica. A desconfiança do não cumprimento do Acordo aumenta e o movimento
toma novo fôlego. Quem são os manifestantes de 1998 e 99? Os mesmos de 1979 ou
duas a três gerações de camponeses pressionando o Estado? A segunda resposta é
a mais factível.
Com a oferta da Solução Financeiro por parte do Estado
acontece o que já se desconfiava: agiliza-se o processo de resolução do
problema e abre-se caminho para a privatização e as valorizadas terras caem nas
mãos de grandes empresas, concentrando a propriedade da terra, utilizando-se
capital intensivo e parcos empregos sendo gerados. As favelas das grandes e
médias cidades brasileiras abrigarão os camponeses expulsos da terra pela qual
tanto lutaram... Mas, a dinâmica desse movimento social sempre guardou
surpresas, e apesar da situação adversa, construiu-se uma história de
conquistas. Daqui em diante será diferente?
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